Becos da memória, de Conceição Evaristo.

Becos da memória (2017), publicado em 2006, foi minha primeira leitura completa de uma obra da Conceição Evaristo. O título é bem sugestivo. É pelos becos da memória de Maria-Nova, personagem e narradora na maior parte do livro, que conhecemos sua história e a de tantos outros. Apesar de narrar em primeira pessoa em algumas partes, não é só a voz da menina que aparece na narrativa. O leitor conhece várias histórias de vida, como a do Tio Totó, Bondade, Negro Alírio, A Outra. Esta última, assim como é um mistério para Maria-Nova, é também para o leitor, que descobre ao final o porquê da distância social que Vó Rita e A Outra mantinham de todos (Vó Rita cuidava dela, muito doente devido a hanseníase).

CONCEIÇÃO EVARISTO (Foto: Lis Pedreira) in.: Glamour

Todas as histórias são marcadas por sofrimento. Numa belíssima parte da oração Salve Rainha a menina via “todos os sofredores, todos os atormentados, toda a sua vida e a vida dos seus” (Evaristo, 2017, p. 45). O “vale de lágrimas” é a favela, que é comparada a uma senzala:

Duas ideias, duas realidades, imagens coladas, machucavam-lhe o peito. Senzala-favela. Nesta época, ela iniciava seus estudos de ginásio. Lera e aprendera também o que era casa-grande. Sentiu vontade de falar à professora. Queria citar, como exemplo de casa-grande, o bairro nobre vizinho e como senzala, a favela onde morava (EVARISTO, 2017, p. 72-73).

Dois personagens me marcaram muito: Vó Rita e Bondade. Ambos têm o coração bom, sempre colocando o outro e suas necessidades em primeiro lugar. Vó Rita dedica-se a cuidar e viver com uma mulher, A Outra, que sofre devido a sua doença (antigamente conhecida como lepra) e vive sozinha, depois que o filho a abandona, na “bitaquinha” que vendia pão, cachaça, cigarro e pedaço de rapadura (Idem, p. 15). Essa personagem, A outra, tem sempre o olhar de Maria-Nova. A menina sempre buscava olhá-la quando ia buscar água na torneira. Em certo momento, a voz da Outra aparece: 

“Era duro enfrentar o olhar das pessoas. […] O pior era aquela menina, com seu olhar curioso, cruel, desesperado. Aquela busca incessante. Ultimamente, Maria-Nova não saía da torneira. Era tempo de férias. […] Eu mal posso chegar o portão. O único olhar que eu enfrento é o de Rita. Ela é a única pessoa que sabe me olhar normalmente. Os outros todos me olham procurando me ver (EVARISTO, 2017, p. 43, grifo meu).

Vó Rita era a única que realmente a olhava, pois os outros apenas procuravam vê-la (ver é diferente de olhar) “Vó Rita dormia embolada com ela”. Essa é a frase inicial do livro, que é repetida em outros momentos da narrativa: “Havia as doces figuras tenebrosas. E havia o doce amor de Vó Rita. Quando eu soube, outro dia, já grande, já depois de tano tempo, que Vó Rita dormia embolada com ela, foi que me voltou este desejo dolorido de escrever” (p. 17, grifo meu).

Diante do sofrimento e do ódio, salta aos olhos o amor e a bondade de Vó Rita. Ela sempre estava cantando e sua voz era ouvida de longe. “Vó Rita guardava tanto amor no peito!” (p. 27). Ao final do livro, Maria-Nova vence o medo e o nojo e abraça Vó Rita antes de partir da favela (era seu último dia ali, devido ao “desfavelamento”), algo que ela evitava fazer: “Estava feliz. Havia vencido o medo, o asco que sentia da amiga de Vó Rita. Levantou-se, abraçou e beijou Vó Rita como se estivesse abraçando e beijando a amiga dela também” (p. 182).

Bondade era um homem bom, que passava na casa das pessoas. Trazia apenas amor, fugindo de intrigas: “Desconversava, conversava, e a intriga morria logo. Vivia intensamente cada lugar em que chegava. Cada casa, cada pessoa, cada miséria e grandeza a seu tempo certo, no seu exato momento” (p. 25). Para mim, a cena com a Filó Gazogênia — sua morte devido a tuberculose — é linda. Ela sabia que estava morrendo. Tinha sede e sonhava que conseguia pegar a moringa com água e beber (p. 106). Ela não queria morrer sozinha: “O sangue escorria pela boca de Filó Gazogênia e o peito arfava… Meu Deus, eu não quero ir assim, tão sozinha!”. Então Bondade chega e é belíssima a cena:

“Fechou os olhos que já estavam fechados, tentando dormir. Era tudo silêncio. Bondade chegou. Entrou de mansinho no barraco de Filó Gazogênia. Abriu a janela e escancarou a porta. O sol entrou iluminando tudo. Filó gazogênia sentiu a presença dele. O peito arfava, mas ela se sentiu mais tranquila. Não iria atravessar a última porta sozinha. […] O sol esquentava-lhe o corpo tão vazio de carne e vazio de vida. […] Estava com sede, muita sede. Bondade adivinhou seu último desejo. Foi até à moringa e encheu a canequinha. E cumprindo o ritual de vida e de morte, lento e solene, susteve a cabeça de Filó Gazogênia. Levou a água aos pequenos goles à boca da mulher. Era muito esforço, o derradeiro que ela fazia. […] (EVARISTO, 2017, p. 108-109)”.

Maria-Nova escreve como mensagem póstuma a sua avó (p. 17). É na escrita que ela vê a possibilidade de esperança. Ela decide escrever sobre seu povo. Também é interessante como a leitura, desde cedo, fez diferença na sua vida. Sua mãe sempre quis que ele e seus irmãos aprendessem a ler.

Além da leitura do livro literário lemos em uma disciplina da faculdade um texto teórico que aborda o tema da memória em sua relação muito próxima com a escrita feita por mulheres. O texto é da Lúcia Branco (1991) e intitula-se Feminina desmemória.

Sobre o texto de Branco (1991) achei-o muito instigante. A escrita feminina (não toda ela, pois há dois caminhos distintos na construção de textos memorialísticos), para a autora, faz-se através da desmemória, que exibe a perda e lacuna, fazendo disso matéria discursiva. Nesse outro olhar dado a respeito da escrita feminina e sua intersecção com a memória, Branco (1991) sugere uma noção de memória “que tende mais para o futuro que para o passado, mas para o esquecimento que para a lembrança, mas para a invenção, a criação, que para o resgate da vivência original” (Branco, 1991, p. 31). O que me chamou bastante a atenção foi a ideia de que a escrita da memória (e a escrita feminina, como expande a autora) é mais próxima da ficção do que se pensa comumente. Ela é guiada por um “desejo de futuro” e composta de lacunas, silêncios, esquecimentos. Isso vai na direção bem oposta de algumas autobiografias que já li. Como a autora ressalta, na perspectiva tradicional da memória, busca-se uma fidelidade à experiência vivida.

Lendo um pouco da biografia de Conceição, pude notar pontos em comum entre seu texto ficcional de Becos e sua vida real. Conceição viveu um tempo em uma comunidade em Belo Horizonte, antes de se mudar para o Rio de janeiro. Apesar de não ser autobiográfico, o livro traz um pouco da vida da autora, mas me parece ser mais uma “desmemória” do que uma perspectiva tradicional da memória. A escolha de várias vozes e a escrita não linear evidenciam isso. 

Referências:

BRANCO, Lúcia Castello. Feminina desmemória. In.: BRANCO, Lúcia Castello. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 19991, p. 29-46.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 1 ed. Rio de janeiro: Pallas, 2017.

Biografia de Conceição: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo%3C%3C. 

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